terça-feira, 28 de outubro de 2008

O racismo como segunda natureza

Hoje, já não é preciso envergar uma farda, estender o braço direito e berrar em vez de falar para se ser fascista. Parece mal, até é ridículo. A gravata, o fato, as boas maneiras têm mais ou menos tapado a violência intrínseca de qualquer movimento de extrema-direita. Porém o discurso permanece quase idêntico aos seus modelos dos anos 30. Claro tenta evitar apelar à aniquilação de um povo, mas o bicho continua vivo, aninhado em muitas cabeças da nossa Europa. Poderia falar da Itália onde não passa uma semana sem notícias de agressões racistas ou de homenagens a Mussolini. Poderia falar da Áustria onde um falecido nostálgico da política social da Alemanha nazi teve direito a funerais nacionais. Poderia falar da Bélgica onde partidos extremistas ganham terreno a cada eleição. Falarei de Portugal, pois é das suas margens atlânticas que escrevo.

Na passada quarta-feira (22 de Outubro), a RPT1 exibiu uma reportagem sobre uma empresa portuguesa que explora a madeira preciosa da República Democrática do Congo. Um exemplo aquela empresa. Abate uma árvore aqui, outra acolá, cuidadosamente escolhida entre milhares. A selva até agradece pois, sem as clareiras assim abertas, a sua regeneração demoraria mais tempo. Está tudo pensado, preparado, planificado, informatizado. Nem a direcção da queda escapa à inteligência do grande sábio branco. Quando tomba um gigante, orientam-no de maneira a não magoar os anões que crescem lá em baixo. A jornalista, pasmada, não se esqueceu de perguntar ao responsável se conseguiam mesmo orientar a queda dos nobres (o adjectivo é da minha autoria) troncos. O homem começou por responder: «Muitas vezes…» antes de rectificar: «Às vezes não…» As más-línguas ainda me vão servir o prato do lapso obviamente revelador. Enganou-se, pronto!

Tudo naquela empresa cheira a grandeza lusa: coragem, espírito de conquista, desculpem de empreendorismo, e bondade (se é cristã, não sei). Sobretudo bondade para o povo. Antes da chegada dos Portugueses, não havia nada, as pessoas viviam na Idade da Pedra (consoante a jornalista, alguns pigmeus ainda não saíram de lá. Coitados!). Agora existem escolas, das quais não posso falar, pois só vimos um muro, mas imaginam-se facilmente repletas de Magalhães, de conexões internet, de cabos de rede, de routers… Em suma, tudo o que faz falta para deixar de vez a pedra e saltar para a modernidade.

Contudo, ainda há muito trabalho para convencer os aldeões de que o seu modo de vida arruína o seu próprio futuro. Então não é que para cultivar mandioca praticam ainda queimadas. Bolas! Passa o Português a cortar uma árvore aqui, outra acolá para permitir à selva regenerar-se, a esforçar-se por ensinar como é que se constrói o desenvolvimento sustentável (como tem sido feito lá na sua terra) etc., e o Congolês deita tudo abaixo por ignorância. Ainda bem que o branco sacrifica uma parte dos seus lucros para erguer belas escolas (enfim, belas não sei bem, só vi o muro). Ah como ficaria bonita a República Democrática do Congo se houvesse ali cem empresas como aquela! Não invento, não senhor, é o que disse o Director à jornalista boquiaberta frente a tamanha grandeza.

O que me incomodou mais foi justamente a ausência de reacção da jornalista. Tudo era aceite como palavra de Evangelho: a bondade dos Portugueses, o respeito pela natureza, o lado filantrópico. Quase acreditei que se tratava de uma ONG prestes a imolar os seus sócios em prol da população local. Nem faltou o representante local a dizer que os Portugueses eram melhores do que os outros brancos. Entende-se, pois o homem falava com a imprensa lusa num território dominado pela empresa em questão. Agora ocorre-me que não mencionou o Benfica, nem o pastel de Belém. Mal-agradecido!

No fim da reportagem, desliguei a televisão e lembrei-me de Tintin no Congo. Além da gravata, do fato e das boas maneiras, o que é que terá mudado desde a década de 1930?

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