quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A sorte de Miguel Sousa Tavares

Às vezes gostaria de poder comentar a actualidade sem hesitar, propor explicações rápidas, sedutoras, sempre pertinentes. Um pouco à semelhança de Miguel Sousa Tavares que, saltando de um tema para o outro, tem a segurança do perito universal. Na passada quinta-feira (TVI, 13 de Novembro), vislumbrou-me mais uma vez. Eu que pensava a guerra no Kivu Norte complexa, com actores e factores múltiplos em jogo, afinal não passava de uma história muito simples.

O início do esclarecimento deixou-me confortável. A guerra tinha a ver com os fantásticos recursos do subsolo congolês naquela região. Recursos pelos quais facções e grupos apoiados por governos estrangeiros ou multinacionais lutavam sem trégua. Pensei para mim qualquer coisa como: Canja! Explicação geopolítica de todo o tamanho! Depois de uma careta ou outra, estacou e percebi que algo estava a acontecer. Outra ideia parecia emergir, qualquer coisa de novo, uma explicação realmente definitiva.

Subitamente o estúdio de televisão transformou-se em tasca (ou será que o cenário ruiu e deixou ver a tasca que o jornal da noite sempre foi?) e Miguel Sousa Tavares em freguês sábio. Afinal, o negócio não tem nada a ver connosco, com uma herança do colonialismo, com os recursos, a situação geopolítica, etc., mas com «eles». Aquela guerra só se explica pela barbaridade sem nome, barbaridade intrínseca que impera na mente daquela gente. Não matam de maneira civilizada: massacram. Não violam normalmente: torturam. E que não venham chateiar Miguel Sousa Tavares com qualquer coisa chamado neocolonialismo porque está farto do pranto do homem branco. Há cinquenta anos que os Europeus saíram de África e a única coisa que fizeram os Africanos foi lutar sem trégua. Aproximei-me do ecrã e tentei descobrir onde estava escondido o bagaço, pois o freguês parecia já não regular bem. O pranto do homem branco?

Até agora não ouvi nenhum presidente em exercício ou Primeiro-ministro de uma antiga potencial colonial pedir perdão uma única vez. Bom, é preciso que se diga, nunca imaginei o rei Balduíno da Bélgica pedir perdão a Mobutu pelas atrocidades cometidas no Congo de Leopoldo II ou Cavaco Silva apertar dignamente a mão a Eduardo dos Santos com a voz trémula: «Perdoai os crimes do meu povo.»! Como explicar que Miguel Sousa Tavares e dezenas de milhares de fregueses espalhados pelas tascas da Europa fora estejam fartos de uma coisa que nunca existiu? Se bem que me lembro de uns tipos de esquerda que declararam, mas foi há muito tempo (TVI ainda não existia, ou seja, era a pré-história), que a Europa tinha esquecido muitos dos seus princípios em África. Talvez um ou outro tenha realmente feito um pedido de desculpa mas certamente sem grandes alaridos.

Não conseguia acreditar no que ouvia. Olhei então de maneira mais atenta para a cara de Miguel Sousa Tavares. Imaginei tudo. Até que Vasco Pulido Valente ou José Pacheco Pereira tinham conseguido apoderar-se da mente do comentador e utilizavam a sua voz para propagar as suas opiniões. Muito tempo depois de a tasca ter fechado, devaneei perante o ecrã negro, perdi-me em conjunturas diversas e inúteis antes de jurar: nunca mais hei-de ouvir um comentário seu! Pelo menos até à próxima quinta-feira.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

O racismo como segunda natureza

Hoje, já não é preciso envergar uma farda, estender o braço direito e berrar em vez de falar para se ser fascista. Parece mal, até é ridículo. A gravata, o fato, as boas maneiras têm mais ou menos tapado a violência intrínseca de qualquer movimento de extrema-direita. Porém o discurso permanece quase idêntico aos seus modelos dos anos 30. Claro tenta evitar apelar à aniquilação de um povo, mas o bicho continua vivo, aninhado em muitas cabeças da nossa Europa. Poderia falar da Itália onde não passa uma semana sem notícias de agressões racistas ou de homenagens a Mussolini. Poderia falar da Áustria onde um falecido nostálgico da política social da Alemanha nazi teve direito a funerais nacionais. Poderia falar da Bélgica onde partidos extremistas ganham terreno a cada eleição. Falarei de Portugal, pois é das suas margens atlânticas que escrevo.

Na passada quarta-feira (22 de Outubro), a RPT1 exibiu uma reportagem sobre uma empresa portuguesa que explora a madeira preciosa da República Democrática do Congo. Um exemplo aquela empresa. Abate uma árvore aqui, outra acolá, cuidadosamente escolhida entre milhares. A selva até agradece pois, sem as clareiras assim abertas, a sua regeneração demoraria mais tempo. Está tudo pensado, preparado, planificado, informatizado. Nem a direcção da queda escapa à inteligência do grande sábio branco. Quando tomba um gigante, orientam-no de maneira a não magoar os anões que crescem lá em baixo. A jornalista, pasmada, não se esqueceu de perguntar ao responsável se conseguiam mesmo orientar a queda dos nobres (o adjectivo é da minha autoria) troncos. O homem começou por responder: «Muitas vezes…» antes de rectificar: «Às vezes não…» As más-línguas ainda me vão servir o prato do lapso obviamente revelador. Enganou-se, pronto!

Tudo naquela empresa cheira a grandeza lusa: coragem, espírito de conquista, desculpem de empreendorismo, e bondade (se é cristã, não sei). Sobretudo bondade para o povo. Antes da chegada dos Portugueses, não havia nada, as pessoas viviam na Idade da Pedra (consoante a jornalista, alguns pigmeus ainda não saíram de lá. Coitados!). Agora existem escolas, das quais não posso falar, pois só vimos um muro, mas imaginam-se facilmente repletas de Magalhães, de conexões internet, de cabos de rede, de routers… Em suma, tudo o que faz falta para deixar de vez a pedra e saltar para a modernidade.

Contudo, ainda há muito trabalho para convencer os aldeões de que o seu modo de vida arruína o seu próprio futuro. Então não é que para cultivar mandioca praticam ainda queimadas. Bolas! Passa o Português a cortar uma árvore aqui, outra acolá para permitir à selva regenerar-se, a esforçar-se por ensinar como é que se constrói o desenvolvimento sustentável (como tem sido feito lá na sua terra) etc., e o Congolês deita tudo abaixo por ignorância. Ainda bem que o branco sacrifica uma parte dos seus lucros para erguer belas escolas (enfim, belas não sei bem, só vi o muro). Ah como ficaria bonita a República Democrática do Congo se houvesse ali cem empresas como aquela! Não invento, não senhor, é o que disse o Director à jornalista boquiaberta frente a tamanha grandeza.

O que me incomodou mais foi justamente a ausência de reacção da jornalista. Tudo era aceite como palavra de Evangelho: a bondade dos Portugueses, o respeito pela natureza, o lado filantrópico. Quase acreditei que se tratava de uma ONG prestes a imolar os seus sócios em prol da população local. Nem faltou o representante local a dizer que os Portugueses eram melhores do que os outros brancos. Entende-se, pois o homem falava com a imprensa lusa num território dominado pela empresa em questão. Agora ocorre-me que não mencionou o Benfica, nem o pastel de Belém. Mal-agradecido!

No fim da reportagem, desliguei a televisão e lembrei-me de Tintin no Congo. Além da gravata, do fato e das boas maneiras, o que é que terá mudado desde a década de 1930?

sábado, 18 de outubro de 2008

Não há realidade. Há só representações.

George W. Bush morreu. Abatido a tiros à saída de um hotel de luxo de Chicago. Tinha pronunciado um discurso onde os inimigos do costume eram ameaçados de destruição. Com as habituais piadas sem humor e as caretas a servir de ponto de exclamação. Dois tiros. A seguir, os gritos, a confusão, uma carro blindado que arranca. Naquele dia, o Presidente tinha sido confrontado com milhares de opositores à guerra no Iraque. Nada que alarmasse um dos homens mais odiados do planeta. Caça ao homem. Prisão do suspeito ideal: um refugiado político sírio. Um Muçulmano. Um «inimigo combatente» para a maior parte dos telespectadores da Fox ou da CNN.
Não tenho acesso a fontes exclusivas de informações. Bush continua bem vivo. Continua a fazer discursos, carretas e piadas sem humor. Também não sonho com o assassínio político como modo de resolução da crise económica. Tratava-se de resumir o argumento de Death of a President (Gabriel Range, GB, 2006). O filme dá-se como documentário, com entrevistas aos protagonistas e imagens de actualidades. Só que os protagonistas são actores, algumas imagens fictícias, ou manipuladas de maneira a introduzir personagens ficcionais em documentos autênticos. Nada é real, mas tudo é realista. O realizador nem esconde a manipulação, está no centro do dispositivo. Cada sequência evidencia o modo de falsificação do seu conteúdo. Noutro contexto (breaking news por exemplo), A morte de um Presidente adquiriria um valor de verdade, enganar-nos-ia com certeza. E para o Presidente, o contexto de enunciação importa, pois morre ou continua a fazer as suas piadas sem humor.
A realidade não existe, Bush não passa de uma personagem feita de pixéis, só o (re) conheço através das imagens. Quando abandonar a Casa Branca, terei mesmo de prestar atenção à qualidade dos noticiários. É que às vezes as imagens baralham.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

o preço da literatura

O que é que leva alguém a escrever? Todos rabiscámos versos mal amanhados, ingénuos, na adolescência; a grande maioria pára rapidamente, uma mão cheia persevera uns anos antes de parar desanimada, cansada de esperar por uma editora, dois conseguirão mesmo publicar, mas talvez um só tenha a hipótese de conhecer não diria o sucesso, mas um certo grau de reconhecimento. No entanto, há ainda os que nunca escreveram na adolescência, que nunca fizeram rimar amor com fulgor, que mantinham um comércio agradável com os livros dos outros, sem que esta relação se traduzisse em vontade de escrever. E um dia, por causa de um acontecimento, sentiram crescer neles um impulso, qualquer coisa ao mesmo tempo de terrível e de inevitável, qualquer coisa que os empurrasse para a mesa, para o lápis e o papel.

É o que deve ter acontecido com Scholastique Mukasonga. Publicou em 2006 Inyenzi ou les Cafards (Inyenzi ou as baratas), narrativa na primeira pessoa do genocídio no Ruanda. Tinha cinquenta anos e estava a conviver com fantasmas desde Abril de 1994. Os fantasmas da sua família chacinada numa zona inóspita do país onde pouca coisa crescia além do medo. A narrativa dá-se claramente como objectivo salvar pais, irmãos, primos, amigos do esquecimento, salvar a memória de uma família como tantas outras no Ruanda da segregação e do racismo de Estado. Uma família sem história que desapareceu sem deixar rastros. Todos foram mortos, mas ninguém sabe quando, nem como. Não existem lápides a relembrar que ali se nasceu e se morreu. Nada sobrou do que se amontoa no decorrer duma vida. Então Scholastique Mukasonga decidiu erguer um edifício frágil, concebido numa matéria quase inconsistente, incapaz de resistir ao fogo e a água: «um túmulo de papel.» (p.158)

Depois de ter acabado o livro de Mukasonga, soube responder a pergunta. Escreve-se para lutar contra a ruína, contra o esquecimento, tornamo-nos arquitectos para conceber catedrais de palavras. E esperar que um dia alguém abra a porta e visite o edifício abandonado.

«Destruir depois de ler»

Não se trata de uma injunção masoquista ao leitor desta mensagem, mas antes do título do último filme dos irmãos Coen (Burn after reading, 2008). Mais uma vez, grande parte da imprensa ficou-se pela superfície: elenco forçosamente «de luxo» (George Clooney, Brad Pitt, John Malkovich entre outros), resumo enganador (pois dá a entender que se trata de um filme de espionagem), sem esquecer o cliché: «um filme diferente da produção habitual dos Coen. Muito pior de que No country for old men.»
Será que vimos o mesmo filme?
Burn after reading não é um filme de espionagem, nem um filme quase falhado. É antes de mais uma tragédia, pois o que leva as duas personagens principais a mexerem-se é o medo de envelhecer. Vejam a obsessão de Harry Pfarrer (Clooney) e Linda Litzke (Frances Mc Dormand) arredor do seu corpo: o primeiro não para de seduzir mulheres e de fazer desporto e a segunda só sonha em operações de cirurgia plástica para apagar as marcas do tempo. Ambos deixam aos poucos antever um pavor perante a velhice, pavor este que é o motor do guião. A identidade de cada um resume-se a um corpo, o seu, e de tudo que gira a seu redor. Transparece claramente quando Pfarrer ao instalar-se em casa da sua amante só leva o seu tapete de exercícios. Este simples objecto aponta para a superficialidade de uma personagem que se reduz aos seus abdominais.
Obsessão pelo corpo mas também medo do solidão que leva algumas personagens a correr atrás do prazer para tentar esconder o seu vazio bem como a sua infelicidade. Assim, um dos amantes que Litzke encontra na Net não fala, não sorri, nem goza o prazer do encontro. Cada personagem aparece como enclausurado na sua angústia de viver e camufla-a recorrendo a vários expedientes: não só a obsessão pelo corpo ou pelo sexo mas também o álcool como no caso de Cox (John Malkovich).
Desde este ponto de vista, a escolha do elenco justifica-se não só porque se tratam de actores habituais na filmografia dos Coen (Clooney, Mc Dormand), mas porque são também o reflexo trágico dos corpos a envelhecer. Percebemos então que falar do «luxo» do elenco é insuficiente: antes de mais é a coragem deste que é preciso enaltecer. Pois não são muitos os actores que não só assumem a seu próprio envelhecimento como o transformam em matéria para moldar a suas personagens.