quinta-feira, 9 de outubro de 2008

o preço da literatura

O que é que leva alguém a escrever? Todos rabiscámos versos mal amanhados, ingénuos, na adolescência; a grande maioria pára rapidamente, uma mão cheia persevera uns anos antes de parar desanimada, cansada de esperar por uma editora, dois conseguirão mesmo publicar, mas talvez um só tenha a hipótese de conhecer não diria o sucesso, mas um certo grau de reconhecimento. No entanto, há ainda os que nunca escreveram na adolescência, que nunca fizeram rimar amor com fulgor, que mantinham um comércio agradável com os livros dos outros, sem que esta relação se traduzisse em vontade de escrever. E um dia, por causa de um acontecimento, sentiram crescer neles um impulso, qualquer coisa ao mesmo tempo de terrível e de inevitável, qualquer coisa que os empurrasse para a mesa, para o lápis e o papel.

É o que deve ter acontecido com Scholastique Mukasonga. Publicou em 2006 Inyenzi ou les Cafards (Inyenzi ou as baratas), narrativa na primeira pessoa do genocídio no Ruanda. Tinha cinquenta anos e estava a conviver com fantasmas desde Abril de 1994. Os fantasmas da sua família chacinada numa zona inóspita do país onde pouca coisa crescia além do medo. A narrativa dá-se claramente como objectivo salvar pais, irmãos, primos, amigos do esquecimento, salvar a memória de uma família como tantas outras no Ruanda da segregação e do racismo de Estado. Uma família sem história que desapareceu sem deixar rastros. Todos foram mortos, mas ninguém sabe quando, nem como. Não existem lápides a relembrar que ali se nasceu e se morreu. Nada sobrou do que se amontoa no decorrer duma vida. Então Scholastique Mukasonga decidiu erguer um edifício frágil, concebido numa matéria quase inconsistente, incapaz de resistir ao fogo e a água: «um túmulo de papel.» (p.158)

Depois de ter acabado o livro de Mukasonga, soube responder a pergunta. Escreve-se para lutar contra a ruína, contra o esquecimento, tornamo-nos arquitectos para conceber catedrais de palavras. E esperar que um dia alguém abra a porta e visite o edifício abandonado.

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